Nada meu vinga, de Gabriella Moura, é desses livros de poesia sobre o qual há muito a dizer. Nem todos são assim, embora muitos sejam. Como não vem ao caso dissertar longamente, farei um foco, este: da metáfora “Eu sou”. Essa metáfora e variantes correspondem a uma autoidentificação como ato de autorreconhecimento. Que um livro de poemas tenha ênfase no eu, e como é o caso, na eu, não é nenhuma novidade. Mas não venho tratar de novidade, e embora jovem, a poeta tem amadurecimento estético-verbal suficiente pra não se perder em busca de novidades, sabendo que poderia, na busca, perder-se num museu.
Há cento e onze vezes de emprego de eu pela eu desde o título do livro, pois minha e meu são variantes de “Eu sou”. Em doze vezes diz sou, e dessas, em cinco vezes diz literalmente eu sou, e em quatro, diz não sou. Todas as vezes, a eu é a mesma. Persiste. Amplia pra cento e quinze vezes, variando pra mim. Não s…
Nada meu vinga, de Gabriella Moura, é desses livros de poesia sobre o qual há muito a dizer. Nem todos são assim, embora muitos sejam. Como não vem ao caso dissertar longamente, farei um foco, este: da metáfora “Eu sou”. Essa metáfora e variantes correspondem a uma autoidentificação como ato de autorreconhecimento. Que um livro de poemas tenha ênfase no eu, e como é o caso, na eu, não é nenhuma novidade. Mas não venho tratar de novidade, e embora jovem, a poeta tem amadurecimento estético-verbal suficiente pra não se perder em busca de novidades, sabendo que poderia, na busca, perder-se num museu.
Há cento e onze vezes de emprego de eu pela eu desde o título do livro, pois minha e meu são variantes de “Eu sou”. Em doze vezes diz sou, e dessas, em cinco vezes diz literalmente eu sou, e em quatro, diz não sou. Todas as vezes, a eu é a mesma. Persiste. Amplia pra cento e quinze vezes, variando pra mim. Não se trata duma eu ególatra, muito menos egocêntrica e menos ainda egoísta. Não há deslize: todas as vezes, a eu constituída por Gabriella Moura a partir de si mesma se pauta a dizer “Eu sou”. Amplia mais: pra cento e vinte e três vezes, dizendo “Eu sou” em seu próprio nome oito vezes. A eu diz você trinta e quatro vezes, e sempre nessa interlocução, a eu diz “Eu sou”. Leio: a cada verbo conjugado, a eu de Gabriella Moura se diz.
A eu de Nada meu vinga não se limita a ser pessoal, que a rigor nem é se limitar. Quero dizer: a eu é consciente de que ser pessoal converge a ser muita gente. Uma mulher é uma pessoa. A mulher é gênero de gente. Dos povos das gentes, mulher é também categoria. Nisso, no conjunto, a eu diz poema a poema que não vinga porque o mundo de homens tóxico, é feito pra destruir mulheres — e uma ilustra o caso de muitas. O corpo — palavra vinte e duas vezes dita entre singular e plural – é mostrado pela eu violado pela feira de corpos que o mundo de homens rege.
Num exemplo, e há no livro, quando uma criança se torna mulher – conforme a poeta muito bem pontua –, há força-tarefa da feira de corpos do mundo de homens pra reger a mulher, liquidando-a, ou a liquidando de imediato se não for regível. Gabriella, nesta estreia, chamará atenção, pois não é regível. Como no poema Insurgência, o grito “eu existo” está pra persistência, que é resistência, de “Eu sou”. Leio assim: Gabriella Moura diz: eu sou, eu existo, agora me aguentem, não vou parar, nem caída. É como se dissesse: não vingo, mas persisto, sou, existo — EU EXISTO.
Jamesson Buarque